domingo, 19 de abril de 2009

Quando Miguel foi morar na vila ele deveria ter mais ou menos uns 7 anos. No primeiro dia em sua nova casa ele ficou no portão esperando algum menino passar para ele fazer alguma coisa,para conseguir uma amigo, mesmo que fosse apenas para jogar uma pelada, mas as horas se passaram e nada. Depois de muito tempo apareceu uma menina, provavelmente da mesma idade que ele. Se olharam e ela se sentou ao seu lado. Uma vez, duas, ao longo dos anos...
A amizade foi crescendo e crescendo, revezavam onde iriam almoçar. Um dia na casa dele, outro na dela. Soltavam pipa, jogavam bola, esconde - esconde. Tudo isso dentro do limite da vila, pois o tráfico tomava conta do bairro.
Luiza era tão inteligente, tão brigona também, que quando Miguel tinha preguiça de fazer a lição de casa ela simplesmente o beliscava ou brigava com ele.
Em qualquer briga de família ou outro problema, era um no outro que eles se refugiavam, que derramavam lágrimas quentes e faziam planos para o futuro...que morariam juntos, que não casariam, que seriam amigos para sempre...eles cresceram...Luiza não se encaixava no padrão de melhor aluna do colégio, tinha sérias dificuldades de aprendizado, mas era esforçada, queria ter grana para se mudar, pois a violência em seu bairro era algo insuportável.
Miguel por sua vez, já havia largado o colégio, depois de ser expulso de diversas escolas.
Várias vezes antes de dormir, Luiza pensava como Miguel tinha mudado, como não conseguia mais ver brilho em seus olhos. Em uma dessas noites ouviu alguém bater na janela de seu quarto.Se assustou. Olhou por um buraco e viu que era Miguel. Abriu a janela e pulou para o lado de fora, como quando era criança. Ele a olhou e disse que a amava, ela começou a rir. Sentaram no chão. Ela disse a ele que havia passado no vestibular, e que amanhã faria a matrícula na universidade. Miguel vibrou por ela.
Por um minuto Luiza esqueceu todas as histórias que ouvia a respeito de Miguel trabalhar com traficantes, e sabia que era mentira, ele era seu amigo, seu companheiro...
Eles se levantaram, ele chegou bem próximo e encostou sua boca na dela e disse bem baixinho:
- Preciso de grana. Tô vendendo umas "paradas", e gastei todo o dinheiro dos caras. Eles falaram que se eu não pagar até amanhã, eles me matam. Me empresta esse dinheiro, por favor!
Luiza começou a socar Miguel, com ódio da sua ingenuidade, falava que não tinha dinheiro nenhum e que se dependesse dela, queria mais que ele fosse para a cadeia.
Ele chorou, um choro nervoso, amargurado.
Luiza disse para ele nunca mais olhar para ela, que se algum dia ela se preocupasse ou chorasse por causa dele, era melhor que ela morresse, pois ele não merecia nenhum tipo de sentimento dela. Ela gritou, chamou ele de marginal, idiota...
Miguel correu para casa, com medo de que os vizinhos acordassem. Sentou na cama, com a cabeça pesada, certo de que teria que se decidir hoje. Ou seria para sempre o bom menino, ou se entregaria de vez para o destino que o chamava a tanto tempo, mas para optar pela segunda opção, teria que fazer algo que mudasse sua história, que fosse um divsor de águas entre as suas duas personalidades. Estava decidido...
De manhã cedo, ele foi para outro bairro e subiu em um ônibus pela porta traseira, sentou lá atrás e não olhou para ninguém, com medo de mudar de idéia. No meio do trajeto, anunciou o assalto, foi grosso e estúpido com todos os passageiros,porém, certo de que não faria mal maior a eles. De repente, sentiu sua espinha gelar, e se virou. Viu aqueles olhos (o mesmo que antecedia a beliscões em sua infância) olhando com surpresa, medo, angústia.
Enquanto balançava a arma e gritava, olhava no fundo do olho de Luiza. Por um instante tiveram o mesmo pensamento, pensaram na pipa, pensaram nos sorrisos, nos bolos que comeram juntos, nos pressentimentos que tinham um com o outro. Ele pensou na mão dela fazendo bonecos de massinha. Ela pensou na promessa da amizade deles só acabar com a morte. Ele também.
Ela chorou, com os olhos vidrados no dele. Ele olhou para trás, e quando retornou o olhar para ela, apontou a arma. Ela continuou o olhando sem saber ao certo o que iria acontecer. Ele disparou, disparou duas vezes contra o peito de Luiza. A mão dela foi até o ferimento, não acreditou...ouviu batidas na janela, sentiu um beijo...
"se algum dia ela se preocupasse ou chorasse por causa dele, era melhor que morresse"
o olho fechou...nos breves segundos que tudo isso durou!
Ele correu. No meio de gritos, desceu do ônibus correndo e chorando. Chorou, chorou, chorou...riu, a risada mais cruel. Ele sabia agora exatamente quem ele era, e se havia algo que o prendia no caminho do bem, agora não existia mais!